sábado, agosto 06, 2005

Ausências Dentro de Mim

Quando completei três anos, o tio Dico me presenteou com um Bambi de pelúcia que era o maior do mundo. Reza a lenda familiar que a primeira palavra que eu balbuciei não foi nem mamã nem papá, foi “Dico”. Pelos quatro anos seguintes foi também a palavra que mais pronunciei. Tio Dico não era tio de sangue: morava na casa em frente à nossa, tinha três filhos homens e eu fui a menininha que não teve. Conheci a cidade inteira antes mesmo de começar a engatinhar, no colo dele.

Uma outra lenda diz que meu gênio ruim já vem de berço: era para tio Dico e a mulher dele serem meus padrinhos de batismo, mas como eu chorava até sufocar todas as vezes que ela chegava perto, meu pai teve que pedir com urgência a interferência de um oficial de Justiça. Foi assim que o tio Rubens, o oficial, veio a ser meu padrinho. Mas Dico nunca deixou de estar perto durante todos os meus primeiros anos.

Foi embaraçoso quando, depois de retornar à Pompéia, me vi abordada na rua por aquele homem alto, de cabelos brancos, que sorria muito e me abraçava tanto, dizendo o quanto eu tinha crescido e o quanto ele me carregou ao colo. Embaraçoso porque quando ele perguntou se me lembrava dele, só pude responder a verdade: não lembrava. Por sorte, ele não se incomodou. Eu não sabia que o tempo dele estava acabando. Foi em casa que me disseram. E aí me lembrei.

Pequenas – e rápidas – ondas de recordações falavam de alguém enorme, de ver o mundo do alto, de dias claros, e de um único dia de garoa, uma garoa fina de depois da chuva num dia quente, quando uma perua Kombi lotada de bichos de pelúcia parou na nossa rua. O Bambi foi meu a partir do momento em que pus os olhos nele, nem mesmo vi os outros. Um ano depois ele me acompanhou na vida nova que meu pai tentou em outra cidade, e por vários anos ainda.

Era um bicho desengonçado com longas pernas, mais alto do que eu, grandes orelhas sustentadas por armações de arame, dorso marrom com o peito e a barriga vermelhos. Foi o meu poneizinho quando ficava de pé e o travesseiro quando deitado. Era também o guarda-costas quando meu irmão e eu queríamos brincar sem a minha irmã. Ela sentia um terror mortal do Bambi: se ele estivesse na porta do quarto, ela não entrava de jeito nenhum, e ainda chorava lá longe. Crianças sabem ser cruéis.

Aos poucos ele foi se transformando num cabide, onde pendurava casacos, bolsinhas, cintos... A pelúcia rasgada em vários lugares, os pezinhos de acrílico tortos, um olho perdido, as orelhas caídas depois que os arames foram arrancados numa “guerra de bichos”. Foi uma longa vida, foi um bom companheiro, e teve um merecido enterro no quintal de casa, sob um coqueiro de onde caíam “mandruvás”, lagartas que queimam.

Isso era o que eu gostaria de ter falado ao Tio Dico naquele dia: que de um modo especial ele sempre estivera comigo, mesmo quando eu nada sabia.

[Pedra Lascada/SP, 1998. ou 1997 ou 1996, vai saber.]

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Linda a história do tio Dico, Naomi. E então, os pelosos mandruvás tbém eram seus terrores? Elas viviam nas goiabeiras do vizinho de casa, lá de Môdi(Mogi, para ser formal), o preço que pagávamos por uma goiaba roubada.

3 de fevereiro de 2009 às 12:47  

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