quinta-feira, abril 08, 2004

Há um ano...

Dona Floripes tinha um cachorrinho, um lulu que era tratado como um bebê. O Bitoquinha dormia numa cesta ao lado da cama de D. Floripes; se era inverno dormia na cama de D. Floripes. Para esquentar seus pés, ela dizia.

Dona Floripes era viúva, professora aposentada e vivia sozinha numa casa com quintal e jardim e vasos de samambaia e violetas espalhados por todos os cantos.

Numa noite quase fria D. Floripes acordou com o latido do Bitoquinha, que tentava se esconder debaixo da coberta enquanto fingia ser um cão de guarda. Ela se levantou, colocou o cachorro sobre o travesseiro e foi para a cozinha tomar um copo de água.

Ela não acendeu a luz pois havia claridade suficiente no corredor; na cozinha a claridade era ainda maior. D. Floripes pensou ter perdido a época certa para podar a roseira perto do portão da garagem, "já é lua cheia, devia ter podado na crescente. Estou ficando velha e não dou mais conta de cuidar do meu próprio jardim, ora essa".

Parou num tranco antes de chegar à pia. Uma pessoa mexia na geladeira, essa era a claridade que chegava até o corredor.

"Um ladrão!" Dona Floripes congelou igual o frango caipira que ela tinha guardado na geladeira ainda à tarde. E com o susto espirrou.

-- Ó, Florzinha, não queria te acordar.

Florzinha? Só uma pessoa se atreveu a dar um apelido a Dona Floripes em toda a sua vida.

"É alma do outro mundo!", Dona Floripes espirrou de novo.

-- Ainda vai pegar uma pneumonia desse jeito, Florzinha. Por que não volta a dormir? E onde você guarda a cerveja nessa casa, Florzinha?

O cachorro latiu de novo, embora não saísse dos limites da cama.

-- Ainda não deu um fim nessa amostra grátis de cachorro, Florzinha? Pensei que já tivesse morrido. Você devia arranjar um canário, faz menos sujeira e não é tão barulhento.

-- J-Joca?

-- Que foi?

-- Joca... você não morreu?

-- Morrer, morri, ué.

-- Virgem Maria! E virou alma penada, Joca?? Mas se eu mando rezar uma missa todo ano no dia que você morreu!

-- Eu sei, Florzinha. Umas missas muito bonitas, até vi algumas, muito obrigado.

-- Você viu? Algumas?

-- É, sabe como é, né, tem ano que o pessoal resolve comemorar fora, fica chato eu faltar já que é em minha homenagem... Mas você entende, né?

-- Ah... Entendo, claro. - Dona Floripes não entendia nada.

-- Então tá... mas e a cerveja?

-- C-cerveja? Eu não bebo cerveja, Joquinha.

-- Ah, é, esqueci. - cara de *então até logo*.

-- Joca...

-- Que foi?

-- Joca, você está em sofrimento?

-- Sofrimento?

-- É, Joca, sofrimento, perdido na Terra, enquanto poderia estar no Céu, eu rezo muito pra você, Joca, pra você merecer o Céu, o descanso eterno, Joca...

O marido de Dona Floripes fez, então, uma cara de sofredor. Tinha lembrado do motivo de não ter se importado de ir embora mais cedo. O falatório da Florzinha, ou melhor, de Dona Floripes.

-- Olhe, Florzinha, acho que fiz mal aparecendo aqui em casa a essa hora da noite, acordei você assim desse jeito, ora veja, até assustei aquele projeto de cachorro, acho melhor ir embora e olhe, esqueça o que aconteceu, sabe, você na verdade está sonhando com isso e...

-- Você precisa de uma missa, Joquinha?

-- Não, eu preciso de uma cerv...

-- Uma missa pra encomendar sua alma, Joquinha?

-- Ahn... Tá, é isso, preciso de uma missa mas tem que ser agora, vai lá, Florzinha, avisa que eu preciso agora.

E enquanto Dona Floripes sai correndo pela porta da frente Joquinha vai até o quarto, dá um tapa na orelha do cachorro e some.

* Baseado em fatos reais.
** Ô, Joca, vambora que já providenciei o tiragosto. Deixa o cachorro quieto!