segunda-feira, abril 05, 2004

Pergunte pra qualquer pessoa qual a matéria que ela mais detestava na escola. É muito provável que a resposta seja Matemática -- ou outra que necessite dela, como Física ou Química. Eu acho que isso acontece por causa da chatura dos professores; a maioria deles não consegue estabelecer uma ligação divertida entre os alunos e os números. Tem uma propaganda do Instituto Universal Brasileiro que passava até recentemente na TV e que mostrava bem os resultados desse medo da Matemática: uma senhora idosa não consegue somar o valor das compras que fez no supermercado e passa vergonha no caixa. Outros não conseguem decorar um número de telefone, ou do ônibus.

O professor brasileiro Júlio César de Mello e Souza, ou Malba Tahan, foi um dos que transformou a Matemática em uma coisa fácil de aprender através de historinhas. Do outro lado do Atlântico é a vez do físico e matemático português Jorge Buescu fazer o mesmo, em forma de crônicas do dia-a-dia.

Qual é a relação do jogo Minesweeper [Campo Minado, no Brasil] com o problema mais importante da matemática? Por que é que a investigação sobre números primos pode provocar o colapso dos sistemas financeiros, tal como há alguns anos humilhou o gigante da electrónica Intel? O que é a teleportação quântica? Por que é falso e completamente absurdo o mito segundo o qual os seres humanos «usam apenas 10% do seu cérebro»?

O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias – Crónicas da Fronteira da Ciência
Jorge Buescu

Colecção CIÊNCIA ABERTA
Editora Gradiva
Nº de páginas: 224
Ano de Edição: 2001
8ª edição – setembro de 2003
ISBN: 972-662-792-3

O Bilhete de Identidade (BI) português corresponde ao RG (Registro Geral) brasileiro, com duas diferenças:
1. a cédula portuguesa é mais chique, trilíngüe (português, inglês e francês);
2. todos eles apresentam o algorismo de controlo, que no Brasil equivale ao Dígito Verificador que alguns RG’s têm – mas só a partir de uma certa data.

Uma lenda urbana diz que o número suplementar que se segue ao número do BI indica quantas pessoas existem com o mesmo nome registradas em Portugal. Ora, sendo o algorismo de controlo obrigatoriamente um número de 0 a 10, fica difícil crer que o número máximo de homônimos seja 10 – ainda mais em Portugal, onde raramente vemos nomes esdrúxulos como Waldisneide Creuza. O que indica esse dígito, então? Simples.

Do mesmo modo que, ao ligar para o telefone xxx-3021, ao inverter os dígitos para xxx-2031 acabe falando na oficina do Terém em vez de com a Luciana, ou errar um dígito (por exemplo, xxx-3022) também cai em lugar errado, os códigos de identificação exigem que a ordem dos dígitos seja respeitada. O algorismo de controlo verifica se tal ordem é mantida. Como ele faz isso?

O algorismo de controlo do BI utiliza a mesma lógica matemática dos códigos ISBN (International Standard Book Number) que é baseado nos teus parentes, os primos – mais especificamente o 11, que é o primo mais próximo do 10. Pegue o ISBN do próprio livro:

972-662-792-3

Sendo abc.def.ghi-j, J é o algorismo de controlo. O algorismo de controlo é o valor que complete um número inteiro divisível por 11 na fórmula:

10a + 9b + 8c + 7d + 6e + 5f + 4g + 3h + 2i + 1j

No nosso caso:

(10x9) + (9x7) + (8x2) + (7x6) + (6x6) + (5x2) + (4x7) + (3x9) + (2x2) + (1x3) = 319
319 / 11 = 29

QED – ou, em português brasileiro, CQD (Como Queríamos Demonstrar). Se o seu RG tem o dígito verificador faça as contas e veja se é o mesmo caso (o meu não tem, não tive como testar. e velha é a sua vó!). Em Portugal faça o teste com seu BI - sempre da direita para a esquerda.

O algorismo de controlo do BI português, então, serviria para checar se a ordem dos dígitos está correta, não fosse por um pequeno problema no algorismo de controlo 0 (zero). Assim como no código ISBN se convenciona chamar o dígito 10 pela letra X, assim era para ser no BI. Mas:

“Ora, muito provavelmente alguma mente burocrática (...) deve ter achado muito desagradável que alguém visse escrito um X à frente de seu número de BI, enquanto outras pessoas tinham apenas um número. Talvez pudesse ser considerado politicamente incorreto (...) Para abreviar: alguém responsável, na sua reconfortante ignorância, teve a brilhante idéia de substituir o dígito de controlo X, quando ocorresse, por 0. Ou seja, quando 0 ocorre como dígito de controlo, pode ter, na realidade, dois valores: 0 e 10! (...) Esta situação ridícula afeta 9% dos portugueses!”

O autor profere mais adiante uma verdade universal: “A ignorância pode ficar muito cara.”

O Caso do BI é a única crônica do livro que se refere a uma característica exclusiva portuguesa, embora exponha a lógica matemática dos ISBN, de passagem. As demais 34 crônicas explicam de forma simples [ou quase isso] problemas universais de Matemática, Física, Cepticismos e Fronteiras.

Uma curiosidade para brasileiros: Malba Tahan é mencionado no capítulo “A Escalada do Monte Pi”. Para gostar de matemática, então, sugiro O Mistério do Bilhete de Identidade e O Homem Que Calculava como literatura de apoio.

Infelizmente O Mistério do Bilhete de Identidade não está disponível no Brasil. Foi o tio Nuno quem trouxe de encomenda.

*algorismo = algarismo em português do Brasil.