domingo, maio 11, 2003

Uma vez travamos conhecimento com um povo que se abotoava. De fato as entranhas abriam-se por uma cavidade da pele e aí a pele abotoava-se sobre bolhinhas chifrudas, como botões. Na hora do almoço por esta abertura queimava um fogão pensante. Assim de pé, na grande ponte de ferro, eu havia atirado ao rio uma moeda de dois copeques dizendo: é preciso cuidar da ciência do futuro. Quem será aquele sábio riocavador, que achará o sacríficio feito ao rio? E Ka apresentou-me ao sábio do ano 2222.

Ah! Um ano após o recém-nato grito primeiro do superestado ASTSU. "Astsu!" clamou o sábio, depois de olhar para o ano da moeda de cobre.

Naquela época ainda acreditavam no espaço e pouco pensavam no tempo. Ele deu-me o encargo de compor a descrição do homem. Eu preenchi todas as questões e entreguei meu relato. "Número de olhos - dois, - leu - número de braços - dois; número de pernas - duas; número de dedos - 20". Pôs o magro crânio reluzente sobre o dedo ensombrado. Discutimos as vantagens e desvantagens deste número. "Será que estes números mudam às vezes?" perguntou ele, percorrendo-me com seu olhar penetrante de grandes olhos inteligentes.

- São números-limite. - respondi eu - O fato é que, às vezes, encontra-se gente com um braço ou uma perna. O número de tais pessoas costuma aumentar consideravelmente cada 317 anos.

- Mas isto é suficiente - respondeu ele - para compor a equação da morte. A língua - observou o sábio do ano 2222 - é a fonte eterna do conhecimento.


Ka, Velimir Khlébnikov, Cap. II, Coleção Signos, Ed. Perspectiva, trad. Aurora Fornoni Bernardini.

Comecei a ler Ka com preconceito. Russo, autor comparado a Joyce, pensei: "deve ser pernóstico até o último pingo de tinta". Mas qual! O livro em si tem 94 páginas, 23 escritas por Khlébnikov; as demais 71 são notas, observações e elogios de Haroldo de Campos, o organizador da coleção. Li apenas as 23 primeiras - estou me preparando para reler debaixo do futon. [Nota mental: não sucumbir ao preconceito, veja o que você ia perdendo.] A parte que realmente interessa, as 23 páginas, trata apenas do tema mais batido do mundo, vida, morte, tempo e memória.

Simples assim.